quarta-feira, 5 de maio de 2010

Jornal Primeira Página

Reportagem publicada pelo Jornal Primeira Página em 30/04/2010

"A fé (e a vida) não se limita a este mundo"


Pastor Homero perde a vida em consequência da malária


Marcelo Fiori

Os sinos da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) dobraram cedo na turva manhã de 23 de abril. O vento uivava, caía uma chuva miúda e se ouvia longe aquelas badaladas pausadas que participam a morte. O primeiro vice-presidente da IECLB, pastor Homero Severo Pinto, 57 anos, estava à margem da vida. Era o fim de uma batalha que perdurou por 40 longos e doídos dias - a grande maioria deles na UTI do Hospital São Lucas da PUC, em Porto Alegre.

A notícia ecoou no mundo, tal como as mensagens que Homero prop
alara ao longo de três décadas investido no cargo de pastor luterano. A derradeira despedida espalhou perplexidade e lamentações em cada caminho trilhado, tamanha a grandeza de seu caráter, que era extraordinário justamente por não parecer que era. Foi dessas mortes paradoxais que ser humano algum depreende as razões. Porque foi ao exercer sua missão de vida que acabou sendo acometido pela malária, doença que desencadeou severas complicações em questão de dias.

A partida do segundo homem na hierarquia da IECLB arrastou uma multidão ao bairro Estação Portão, onde se localiza o templo cuja nave não deu conta de abarcar tanta gente durante o velório. A quantidade de pessoas presentes, o número de homenagens e o volume de condolências oriundas do país e do mundo deram ideia do quão magno era havido o religioso portonense. Uma repercussão do tamanho da humildade dele.

Findo o velório, que se encerrou com uma cerimônia religiosa na manhã de sábado, o féretro se deslocou para o Cemitério Municipal de Taquara, onde ocorreu o sepultamento. Não houve quem não chorasse imerso de tristeza. Ele deixou a esposa Denize Volkart Pinto (professora coordenadora pedagógica do Sinodal Portão), com quem era casado desde 1976, e os filhos Catarina (juíza federal, nasc
ida em 1979) e Mateus (veterinário, de 1982).

Nesta semana, a morte do pastor Ho
mero ressoou no Senado Federal pela voz do parlamentar gaúcho Paulo Paim, que pediu para a Mesa Diretora da Casa encaminhar voto de pesar à família. Eram amigos. Na internet, sites em diversos idiomas de países os mais variados davam conta do tamanho da perda.

O presidente da IECLB e moderador do Conselho Mundial de Igrejas, Walter Altmann, sublinhou o legado deixado pelo colega. "O falecimento do pastor Homero causa grande consternação e tristeza na igreja. Somos gratos pela vida e testemunho dele no Brasil, como entre igrejas irmãs e parceiras. Na confiança que temos em Deus, as sementes que Homero disseminou frutificarão em bênçãos para muitas pessoas." Já o reitor da Escola Superior de Teologia (EST) de São Leopoldo, pastor Oneide Bobsin, ponderou que Homero se orientava pelo diálogo "reconhecendo as diferenças e sem encobrir injustiças".

As palavras que compõem o título desta reportagem - sem os parênteses, contudo - foram proferidas por Homero a 9 de março de 2004, na Casa Matriz das Diaconisas, em São Leopoldo, por ocasião do falecimento da irmã Doraci Edinger. Durante a homilia, o portonense ressaltou que "a ressurreição de Cristo permite um novo olhar, uma vez que a fé não se limita a este mundo".

A personificação da humildade

"Até as paredes choraram." O prefeito Elói Besson evocou uma prosopopéia – figura de linguagem que dá vida e ação a coisas inanimadas – na tentativa de explicar o imenso sentimento lúgubre que se abateu sobre o templo situado na rua Martim Lutero. Revelou não ter visto tantas ho
menagens nem mesmo em velórios de ex-presidentes da República do período ditatorial.

Para Besson, que volta e meia ouvia o líder pastoral pelas ondas da Rádio União FM, não há outra explicação que não seja uma espécie de convocação divina. "Deus o chamou para uma grande missão no céu." Declarou, ainda, que perdeu parte de si na morte do pastor, cujo andar trazia junto "a inteligência e o respeito".

Dos olhos azuis do ex-prefeito Dary Hoff verteram lágrimas durante todo o tempo em que permaneceu no velório. O homem com nome de
poeta épico grego foi secretário da Educação, Cultura e Desporto de 1993 a 1996, quando Hoff governou Portão pela primeira vez. Sem filiação partidária, ele assumiu o cargo a convite do então prefeito e contra seu nome sequer um ai foi dito no âmbito político. Fora escolhido apenas pelo critério competência.

Entre tantos avanços, a gestão de Homero ficou marcada pela criação da Gincana da Emancipação de Portão, o maior evento cultural da cidade até hoje. Na opinião do ex-prefeito, que é ligado à IECLB, a comunidade local nunca teve um líder tão carismático. Da pessoa, disse Hoff, fica a marca da sabedoria e da simplicidade. "Uma perda irreparável. Muito humano e humilde. Não foi à toa que ele chegou aonde chegou", salienta.

Um homem que ouvia, sobretudo. Assim o diretor-geral do Colégio Sinodal, Ivan Renner, vê a imagem de Homero Severo Pinto. Ao pastorear o rebanho de fieis, o portonense exercitava o sentido da audição como poucos para, só então, aconselhar. Agia de forma fraterna e engajada. E
ra devotado à causa da igreja e da educação.

O projeto do Sinodal Portão ganhou incondicional apoio e incentivo do primeiro vice-presidente da IECLB. "Ele agregou muito ao modo de ser e de p
ensar de muita gente. Ajudava onde e como podia. Tanta vocação o levou a tantas tarefas, e até na África, onde contraiu a doença. É algo que a nossa racionalidade não alcança compreender", frisa Renner.

O avanço da doença

Primeiro muito cansaço, depois febre e
calafrios. Começou assim, em 6 de março último, com sintomas aparentemente comuns, a doença que levou o pastor Homero Severo Pinto. Quatro dias depois ficou diagnosticado que sofria de malária maligna – mal que havia contraído em fevereiro ao viajar para Moçambique, na África.

Coordenador da Missão Global da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), o religioso representou sua entidade em reunião das igrejas parceiras da Igreja Evangélica Luterana de Moçambique, ocasião em que se discutiu o envio de obreiros do Brasil para o país africano.

Em 12 de março, com o quadro de saúde se agravando, Homero foi internado no Hospital da Unimed, em Novo Hamburgo. Tinha febre constante, confusão mental de espaço e tempo, inquietude. Sem melhora, passou para a UTI da mesma instituição na madrugada do dia 14. Na tarde do mesmo dia, porém, diante da necessidade de hemodiálise e uma UTI mais qualificada, acabou encaminhado ao Hospital São Lucas da PUC, em estado grave. As funções do cérebro, do fígado e dos rins foram atacadas pelo protozoário plasmodium falciparum, causador da malária maligna.

O paciente experimentou uma internação homérica – no significado "fora do comum" da palavra. No início, reagiu à medicação e aos cuidados médicos, mas seguia na UTI. Dias depois, contraiu pneumonia e sofria também de insuficiência renal aguda. Teve convulsões. Com a piora, a 24 de março, precisou ser sedado e entubado. Tinha infecção generalizada, o chamado "choque séptico". Estado gravíssimo.

Em meio a tanta desventura, o luterano, que até então nunca havia tido nenhum problema grave de saúde, lutava silente pela vida. Aparentava pequenas melhoras que alimentavam as esperanças de todos. No dia 28 de março, o médico responsável pelo tratamento disse à família que, em mais de 40 anos, seu chefe nunca vira alguém resistir com tão baixa oxigenação (nível altíssimo de gás carbônico no sangue). Dias depois, resistiu a um acidente vascular cerebral (AVC). E outro exemplo surpreendente da garra de Homero se viu no último dia 15, quando sofreu uma parada cardíaca de quatro minutos, ao cabo da qual resistiu - ainda que em estado gravíssimo, ainda que com o organismo no limite.


Vencida essa etapa, houve algumas sutis melhoras no lento folhear dos dias. No entanto, no dia 19, seus pulmões estavam fibrosados (processo de degeneração) de modo que quase impediam a função respiratória - esta ainda possível graças a uma máquina de ventilação mecânica operando no máximo. Também voltou a ser submetido a hemodiálises para filtrar o sangue (recebeu várias transfusões durante a internação) e a equipe médica suspeitava que a esta altura já havia lesões no cérebro.

Veja o que a família escreveu em um blog na internet (eram tantas as pessoas ansiosas por notícias que esse foi o meio encontrado para que todos pudessem acompanhar o caso) no dia anterior à morte por falência múltipla de órgãos, 22 de abril:

- Agora à noite, após chegarmos em casa, nos ajoelhamos e oramos pelo milagre da cura do pai. Esperamos por sua cura, pela manifestação plena do poder de Deus, se esta for Sua vontade. Enquanto houver vida, continuaremos orando pelo seu restabelecimento. Não há mais o que os médicos possam fazer - os níveis de saturação estão muito baixos, a pressão da ventilação mecânica está muito alta e provavelmente já há alguma lesão cerebral.




Uma vida inteira dedicada à IECLB

Nascido em Sobradinho a 8 de julho de 1952, Homero Severo Pinto ingressou na Faculdade de Teologia da Escola Superior de Teologia, em São Leopoldo, em 1972. Dali saiu pastor formado cinco anos depois. No dia 5 de fevereiro de 1978 foi designado para a Paróquia de Igrejinha, onde permaneceu por 10 anos. Neste período assumiu a função de pastor distrital do Distrito Eclesiástico Taquara em duas gestões e foi membro do Conselho da 4ª Região Eclesiástica. Foi ordenado para o ministério pastoral a 23 de setembro de 1984, na Comunidade de Igrejinha.

Trocou Igrejinha por Portão em 1988, onde também
permaneceu por uma década. Neste período exerceu a função de vice-pastor regional da 4ª Região Eclesiástica. Foi o primeiro Pastor Sinodal do Sínodo Nordeste Gaúcho, exercendo essa função de 1998 a 2006. Ocupava, de 20 de dezembro de 2002 até hoje, o cargo de vice-presidente da IECLB.

Assumiu em 1º de fevereiro de 2007 a coordenação de
Missão Global da IECLB. Desde então mantinha estreito contato com obreiros com atividades em igrejas e instituições do exterior. Um sem-fim de mensagens procedentes de todo o Brasil e de vários países demonstrou o quanto seu jeito afetuoso e humilde amealhou pessoas ao longo da vida.

Um comentário:

  1. Amigos:
    Quero agradecer aos familiares do colega Homero por manterem este blog "vivo", como testemunho de sua vida e ministério. Cochichei isto nos seus ouvidos naquela sexta a noite do velório, e me alegro por esta continuidade. Pessoalmente, ao ver as fotos desta matéria, lembrei de minha participação na mesma reunião em que Homero participou, quando representei a IECLB como Secretário de Comunicação na época. Foi um ano antes da morte da Irmã Doraci. Ter sido recebido por ela e acompanhado seu trabalho foi gratificante. Homero pode ver realizado um dos sonhos da Irmã Doraci, a construção da clínica, que recebeu seu nome.
    Que a garra missionária e desafios evangelísticos destes dois colegas, levados de nosso convívio no exercício de seus chamados, continuem nos inspirando até o Dia de Nosso Senhor Jesus, quando "haverá um só rebanho e um só pastor", onde não haverá brasileiros ou africanos, mas "estaremos para sempre com o Senhor" (I Tessalonicenses 4.17,18)
    Um abraço. Heitor

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